Para Maria Lamas, era fundamental
que “as mulheres não ficassem para trás”. Esta preocupação, associada a uma
enorme tenacidade e à capacidade inventiva de reconfigurar a realidade e as
circunstâncias, moldaram Maria Lamas como uma figura ímpar. À medida que a sua
neta, a professora doutora Maria Benedicta Pereira Bastos Monteiro, desfiou a
sua história, ocorreu-nos que apesar das inquietações que, ainda muito jovem,
sentiu, Maria Lamas se poderia ter acomodado ao padrão de vida esperado. No
entanto, circunstâncias adversas levaram-na e enveredar por caminhos
considerados menos apropriados para uma mulher da classe média, tendo
trabalhado como jornalista e tradutora. Este expediente, pouco comum,
permitiu-lhe por um lado, “ganhar a vida”, para si e para as suas três filhas,
e, por outro, proporcionou-lhe um ponto de observação e de ação privilegiado,
focado nos ideais que haveria de assumir durante toda a vida. As mulheres não
deveriam ficar para trás, nem os seus filhos, nem a humanidade em geral. De
forma aberta ou sub-reptícia, ouviu as mulheres e deu-lhes pistas para que
alargassem os seus horizontes, procurando contribuir para a sua educação. Deste
modo, criou jornais, nomeadamente para crianças. No campo da ficção, dirigiu-se
também aos mais jovens e aos adultos. Aos 42 anos publicou o romance “Para além
do amor”, em nome próprio, tomando a difícil decisão de expor publicamente a
sua identidade. É nesta obra que reitera o seu propósito de vida, através do
lema “sempre mais alto”. Aventurou-se em grandes sínteses como a “Mitologia
Geral” ou em longas reportagens etnográficas e sociológicas como “Mulheres do
meu país”, a sua maior obra. Este documento, que compila 24 fascículos mensais,
foi escrito após a demissão de o jornal “O Século”, aos 53 anos, depois de 20 anos
de direção, na sequência da proibição, pelo Estado Novo, do “Conselho Nacional
das Mulheres Portuguesas”, a que pertencia e que se recusou a abandonar. Muitos
dos seus escritos, de diversos géneros, espelham pois a sua experiência de vida
ou a de outras mulheres, ou relatam até o modo de convivência que deveria
existir entre crianças de diferentes estratos sociais, procurando estender a
ponte entre a realidade do seu tempo e uma nova era, de progresso, harmonia e
liberdade. Considerada pela família como “uma mulher que só fazia o que queria”,
inspirou nos seus membros sentimentos contraditórios, desde a discórdia, junto
dos mais conservadores, até à adesão à mesma luta. Ao longo do tempo, o seu
caráter ter-se-á depurado, reduzindo-se às suas caraterísticas essenciais,
através do filtro de sucessivas prisões e do exílio. Em França apoiou os emigrantes
e os desertores da guerra colonial e desempenhou um “papel suave”, de
acompanhamento, junto de mulheres que viviam sozinhas. Sem lar seu, repartiu-se
entre Paris e as casas das filhas, transportando todos os bens numa mala de
viagem. Em Maio de 68, dobrados os 70 anos, ousou observar a revolução nos
locais de maior violência, para grande admiração dos que a acompanhavam. Dado o
reconhecimento do valor do seu exemplo e obra, foram-lhe dirigidas diversas homenagens
a nível nacional e internacional. A 25 de abril de 1974, para sua enorme
alegria, acompanhou a Revolução dos Cravos.
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